sexta-feira, 27 de março de 2009

A comunhão dos santos

Por Robson Wellington

O cabeça de uma casa judaica fazia a mesma oração matinal todos os dias, dando graças a Deus por não ser gentio, nem mulher, nem escravo. Mas os representantes dessas três categorias desprezadas foram remidos e unidos em Cristo no nascimento da igreja em Filipos. O Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos, mas Lucas no relato de Atos seleciona apenas três: uma comerciante chamada Lídia, uma jovem escrava e o carcereiro romano. Creio que essa seleção foi feita não porque eles eram particularmente notáveis, mas sim por demonstrarem como Deus rompe barreiras e em Cristo pode unir pessoas diferentes. Pois verdadeiramente como Paulo escreveu aos Gálatas: “Não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem liberto, nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus”.

Fomos criados a imagem e semelhança de um Deus trino, ou seja, uma unidade que contempla em si diversidade, uma comunhão, uma família, uma comunidade, um permanente conselho de três pessoas eternas que vivem em perfeita harmonia. No entanto, as diferenças entre nós em geral são um fator de distanciamento e não de comunhão. Desde a Queda a convivência dos homens sempre foi um grande desafio. Hoje vivemos num tempo de diminuição das fronteiras físicas e da comunicação, mas também do alargamento da distância afetiva e da comunhão. Infelizmente, parece que temos medo da diferença, da opinião e do jeito do outro. Talvez a gente tenha tanto medo da diferença, porque ela é um forte convite a auto-confrontação e não gostamos disso. O outro é um fator de ameaça. Ele desafia quem somos, ele é um espelho. A voz do outro é um auto-exame. Então, preferimos o conforto da uniformidade.

Muitas vezes os grupos cristãos se tornam um lugar de formatação de pessoas, um lugar que pouco valoriza a diversidade e que não aceita as peculiaridades do outro. A palavra “comunhão” foi esvaziada de significado, representando passeios ocasionais ou lanches e conversas superficiais depois do culto, que pouca ligação tem com a comunhão bíblica que é o compartilhar de vida. Pense, por exemplo, nos grupos que se propõem “interdenominacionais”. Eles são fruto de um enorme esforço unificador, mas em geral, até eles demonstram certa dificuldade de acolher a diversidade, esforçando-se para criar uma linguagem híbrida uniforme e rejeitando certas peculiaridades do outro para a “paz” do grupo. Mas como disse Luis Fernando Veríssimo: “Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza”. A. W. Tozer escreveu: “Na verdade é a variedade e não a uniformidade que é a característica de Deus. Em tudo que você vê a mão de Deus, você vê variedade e não uniformidade”.

No entanto, tenho que admitir que sou muitas vezes pouco gracioso com alguns setores do cristianismo. Trago na bagagem uma série de experiências ruins com o legalismo religioso-moralista. Geralmente, catuco excessivamente alguns irmãos mais parecidos com esse esteriótipo negativo que eu formei, enquanto sou muito simpático com aqueles que estão mais alinhados com a minha maneira de pensar atualmente. É uma fraqueza indesculpável! Crer na “santa igreja universal; na comunhão dos santos”, como está declarado no credo niceno, implica abandonar a auto-imagem de arauto da verdade que quase sempre leva ao rebaixamento de todos os outros cristãos que não se juntaram ao seu movimento. Ser universal (ou católico) significa também ser receptivo e caloroso a todos, sejam reacionários ou reformadores, desde que isso não signifique excluir qualquer outro. Significa alegremente aceitar e receber os pobres, cegos, vacilantes, aleijados, imperfeitos, confusos, equivocados e diferentes, não apenas de uns poucos exclusivos e elitizados.

Quero receber do Espírito Santo a graça de entender que os diversos dons foram concedidos para promover a unidade dos cristãos. Quero repartir o pão na mesma mesa com tradicionais e pentecostais, fundamentalistas e liberais, assim como os filipenses repartiram com o gentio, a mulher e a escrava. É maravilhoso observar como apelo universal do evangelho conseguiu alcançar pessoas tão diferentes e como seu efeito unificador conseguiu juntá-los para formar a nascente família de Deus naquela cidade. Lucas encerra sua narrativa sobre Filipos com uma referência aos “irmãos”. Mais tarde Paulo em sua carta aos Filipenses os exortou a permanecerem: “firmes em só espírito” a pensarem “a mesma coisa”, terem o “mesmo amor” e serem “unidos de alma, tendo o mesmo sentimento”. Como quero ficar maravilhado com a beleza da diversidade da igreja! Que os grupos cristãos sejam um lugar onde cada um não tenha medo que ser o que é, porque sabem que o céu é logo ali e que lá crianças de todas as tribos, línguas e nações brincarão no mesmo quintal, as mulheres conversarão na mesma praça e os homens se banharão no mesmo rio. As diferenças não mais nos dividirão porque o Deus trino será tudo em todos.

A Ele a glória!

domingo, 22 de março de 2009

Creio e duvido

Por Robson Wellington

Como moro numa cidade da Baixada Fluminense o trem sempre foi pra mim um importante meio de transporte. E andar de trem é uma experiência antropológica! Vendedores de todo tipo de quinquilharia transitam pelos vagões. Pregadores de vários estilos disputam a atenção dos passageiros. Certa vez, estava indo para o trabalho num trem lotado e numa determinada estação entrou um pregador que começou a apresentar sua mensagem em voz alta. Nesse dia, eu prestei uma atenção especial ao pregador, ao conteúdo da mensagem e a reação das pessoas. O pregador falava como um arauto encarregado de declarar paz ou guerra e de fazer proclamações solenes. O conteúdo da mensagem era fortemente religioso e moralista. Algumas pessoas demonstravam certo incômodo, mas de uma maneira geral as pessoas ignoravam o pregador e sua mensagem. Aquele tipo de acontecimento tinha passado a fazer parte do quadro cotidiano da maioria daquelas pessoas e raramente provocava reações de adesão ou rejeição. Mas de repente, algo me chamou atenção. Quando o pregador vociferou uma sentença de condenação para aqueles que eram como “a víbora surda que tapa os ouvidos”, um casal de velhinhos abandonou imediatamente a aparente indiferença trocando entre si um forte olhar questionador. A senhora perguntou ao esposo: “Querido, Jesus manda fazer isso dessa forma?”. O senhor titubeando respondeu: “Querida, eu não sei”.

Surpreendentemente, percebi fé tanto naquele pregador quanto naquele casal. Li em algum lugar que “há mais fé na dúvida sincera do que na metade dos credos”. Daí, pensei em algumas implicações dessa percepção e concluí que fé e dúvida podem caminhar lado a lado, por mais que os condicionamentos da nossa cultura religiosa digam o contrário. É intrínseco ao sujeito religioso assegurar a sua convicção inabalável, a sua certeza absoluta e o seu acesso perfeito à verdade divina. Ele se considera tão convicto de que atingiu a realidade única, objetiva, real e concreta, que sai para fazer prosélitos. Admitir a remota possibilidade de não estar alinhado à verdade absoluta, constitui-se em uma fraqueza inadmissível para os demais praticantes de sua tradição. O grande problema dessa maneira de pensar é que ela parte de uma premissa falsa. A dúvida não é a antítese da fé. O oposto da fé é a decisão de não crer em Deus. Todos nós temos dúvidas porque nosso conhecimento é imperfeito e incompleto. O homem que clamou a Jesus: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” demonstrou a disposição firme de crer em Deus mesmo em meio a perguntas e dúvidas.

João Batista foi aquele que ouviu uma voz do céu afirmar sobre Jesus: “Este é o meu Filho amado”. Contudo, ele começou a duvidar quando a sua vida deu uma reviravolta e ele se viu atrás das grades de uma prisão. Jesus não estava fazendo as coisas do jeito que ele acreditava que deveria fazer, por isso questionou: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar outro?”. E foi justamente sobre esse homem, que permitiu-se duvidar, que Jesus afirmou: “Entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João o Batista”. Só quem abandona o conforto dos dogmas pode semelhante a um veleiro, experimentar a aventura de navegar ao sabor do vento indomável do Grande Aventureiro sem a menor pretensão de achar um porto. Só quem abandona a rigidez dos dogmas pode desfrutar da graça da fé no Transcendente, no Insistematizável com seu sublime misto de revelação e mistério.

Na Bíblia as pessoas que encontramos com certezas absolutas não são os heróis da fé. Aqueles que nunca duvidaram com o que seria a vontade de Deus foram os fariseus que crucificaram Jesus. A fé confia e permanece fiel mesmo quando é provada. O caminho do Evangelho é cheio de perguntas, dúvidas, lutas e ainda assim, fé! Chesterton no primeiro capítulo de seu livro Ortodoxia fala sobre o manicômio. Segundo ele, o manicômio é onde deveriam estar “as pessoas que acreditam plenamente numas poucas máximas cínicas não verdadeiras”. Loucos com sua lógica, suas convicções inabaláveis e suas certezas absolutas. Ele conclui o capítulo dizendo que: “Aquele transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem ocupa primeiramente a posição semelhante à do sol no céu. Temos consciência dele como uma espécie de esplêndida confusão; é algo brilhante e informe, ao mesmo tempo fulgor e borrão. Mas o círculo da lua é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável, como o círculo de Euclides sobre um quadro-negro. Pois a lua é absolutamente razoável; e a lua é a mãe dos lunáticos: ela deu a todos eles o seu nome”.

Vale lembrar também o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, quando diz que: “O ateísmo, em sua própria negatividade, pode ser uma grande oportunidade para a fé; pode até ser uma medida da Providência para que os cristãos, assumindo a crítica atéia, compreendam que Deus é sempre muito maior do que as idéias que nós fazemos dele. A crítica dos ateus pode ajudar-nos a romper os esquemas em que tantas vezes encadeamos e deformamos a idéia de Deus”. Formar uma cultura de diálogo requer uma imensa confiança em Deus e uma disposição para abrir mão da necessidade de determinar, mudar ou controlar as convicções e ações dos outros. Quando criamos um ambiente em que as pessoas são livres para questionar, duvidar e investigar devolvemos a Deus a responsabilidade de mudar o coração das pessoas. E é exclusivamente dele essa tarefa.

A Ele a glória!

domingo, 8 de março de 2009

Um lugar que chora

Por Robson Wellington

O romancista inglês John Berger fez o seguinte relato: “Alguns dias depois de retornar de onde acreditava ser, até recentemente, o futuro Estado da Palestina, e que hoje é a maior prisão do mundo (Gaza) e a maior sala de espera do mundo (Cisjordânia), eu tive um sonho. Eu estava sozinho, em pé, despido até a cintura, num deserto de arenito. Depois a mão de alguém apanhava no chão um punhado de terra e jogava no meu peito. Esse gesto estava marcado por consideração, e não agressividade. Antes de me atingir, a terra ou o cascalho se transformavam em pedaços de tecidos rasgados, provavelmente de algodão, que se enrolavam, como faixas em torno do meu dorso. Depois, esses pedaços de tecido se transformavam novamente e viravam palavras, frases. Escritas não por mim, mas pelo lugar. Ao me lembrar desse sonho, a expressão terra arrasada não parou de vir e voltar à minha cabeça. Essa expressão descreve um lugar ou alguns lugares, onde tudo, tanto, no sentido material como imaterial, foi decepado, removido, varrido, assoprado, desviado, tudo, exceto a pobre terra palpável”.

Eu também tive um sonho. Foi no mês de janeiro que vi mais de mil palestinos morrerem confinados em uma estreita faixa de terra, submetidos ao ataque terrestre, marítimo e aéreo de um dos mais poderosos exércitos do mundo. A Faixa de Gaza é o território mais densamente povoado do mundo e, ali achar que bombas separarão o joio (terroristas) do trigo (civis) não passa de uma piada mórbida. Dois terços das vítimas da ofensiva israelense não eram combatentes e um terço tinha menos de 18 anos. Folhetos foram lançados anunciando os bombardeios e pedindo para que a população fugisse. Mas, fugir para onde? Todos os acessos ao lugar foram fechados. Dessa vez até a entrada da imprensa foi proibida.

A ministra israelense de relações exteriores Tzipi Tivni disse se comover com o crescimento do “ódio contra Israel”. Mas quem o semeou? É realmente surpreendente que esse espetáculo fúnebre contra crianças, mulheres e idosos tenha provocado a ira contra os dirigentes israelenses? O pacifista israelense Uri Avnery fez uma avaliação precisa: “O que ficará marcado a ferro em brasa na consciência do mundo é a imagem de Israel, mostro sanguinolento, pronto a cometer a qualquer momento crimes de guerra e incapaz de obedecer a todo limite moral. Haverá conseqüências graves para nosso futuro a longo prazo, nossa imagem no mundo, nas chances de obter a paz e a calma. Esta guerra, é, no final das contas, também um crime contra os israelenses, contra o Estado de Israel”.

De certa forma, também senti um punhado de terra sendo jogado no meu peito e me lembrei de coisas das quais me envergonho. Houve um tempo que acreditava e ensinava que a fundação do Estado de Israel em 1948 era a fatualidade da leitura histórica na seqüência do apocalipse bíblico. Guardava simpatia pela defesa que os EUA ofereciam ao povo escolhido de Deus e ira pela oposição de todos os infiéis aliados da Besta e Anticristo. Daí até a tácita celebração de cada bomba lançada como sinal da volta de Cristo foi um pulo. Aqui está o nefasto resultado da religião. Ela é cínica em essência. Ela torna sagrado instituições, estruturas e abstrações e abandona o domínio do respeito pela pessoa humana.

O modo como somos uns com os outros é um bom teste para nossa fé. Brennan Manning coloca isso da seguinte forma: “Como trato um irmão ou irmã no dia-a-dia, como reajo ao bêbado marcado pelo pecado na rua, como respondo a interrupções de pessoas de que não gosto, como lido com gente normal em sua confusão normal num dia normal podem ser melhor indicação da minha reverência pela vida do que um adesivo contra o aborto preso ao pára-choque do meu carro”. Se existe alguma doutrina ou lógica religiosa que legitima o que vem acontecendo na Faixa de Gaza eu não quero ter nenhuma parte com ela. O meu Messias é palestino! O poeta curdo Bejan Matur escreveu que: “um lugar que chora entra no nosso sono e não parte nunca”. Então, finalmente comecei a entender o sonho, a terra jogada que virou tecido, que virou palavras e frases, que escrevi não por mim, mas pelo lugar.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Lapso

Por Eliel Moura

Milhares de sinais e mensagens deixadas como testemunhos da vida que grita, começam atualmente a se correlacionar!A partir daí deságua forte corrente levando uma enxurrada de questões a zonas de obsolescências. Perambular por este antigo e decadente centro de convergência, é a partir de agora, uma opção de quem entende claramente não ser ali o espaço das mais contundentes decisões. Certamente passaremos por lá, questionaremos, choraremos, cavaremos mais fundo e depois voltaremos, para o lugar cuja devoção maior nos separou. É nesta dialética geográfica entre o centro e áreas miseráveis e escusas que logramos construir uma estrada.

No enclausuro de quem deixou crescer frustrações e decepções uma imperativa direção bateu a porta: no serviço a outros se esconde o apaziguamento de si mesmo. Uma propositada ação de coerência no mundo das calamidades é aliviar a dor dos que não possuem genuíno consolo. Talvez, neste caminho, necessitemos também proclamar a desagradável verdade de que ela está em todos, dos triunfalistas aos depressivos. O conhecimento de si neste caso é a pior e melhor coisa que pode nos acontecer! Pior porque destrói uma bem entrelaçada linha de pensamentos e emoções que de certa forma nos sustentam. Melhor sim, e ainda busco coragem para dizê-lo, porque chama a jornada realmente cristã, aquela que é abalada mais não destruída.

Tantos e tantos! Não consigo mais vê-los sem levantar minha quebrada voz! Pare com isto, pare de ter compaixão de si mesmo! Não esvazie o que homens e homens em dilemas inconciliáveis bravamente protegeram. Há uma fé provada, mais valiosa que ouro, que embora não provoque arrepios constantes é insanamente indestrutível. Uma confusa geração de “crianças abandonadas” transita errante para a linha de frente. Nos ajustamentos do caminho hão de descobrir seu lugar...

terça-feira, 3 de março de 2009

As bobagens de conhecer-se

Por Eliel Moura

A cerrada neblina parece palpável. O movimento da mão age no sentido de tocá-la para recolher uma amostra. Não restarão muitos indícios de tal ocorrido. Está frio. Mais alguns passos e já se não enxerga nada. Hesitando e sempre avante, ali está, mergulhado na odisséia do auto-descobrimento. Um guia na mochila assevera a importância desta jornada e prioriza alguns itens fundamentais! Entre eles, um grifado em vermelho: “vá o mais fundo que você puder”. A aparente viagem solitária é uma maratona de multidões, cada qual com seu exclusivo roteiro, mas com os mesmo objetivos. À medida que caminha vai encaixando as peças, mexendo aqui, iluminando ali e realmente acreditando num sentido para as coisas.

A condensação que trás as nuvens do céu à terra é agora um lugar de devassa. Anotações por todos os lados, eventos supostamente resguardados na lógica aristotélica e a empolgante sensação de que o mistério é um rei sem trono. “Você consegue ver? Consegue entender agora?”. Devotada platéia acompanha os desdobramentos e adiciona novos elementos a trama! Ninguém questiona a enfadonha marcha. Em cada passo, mais “impressionantes” e vazias descobertas juntam-se a montanhas de informações. Por que tanta gente naquela trilha que sai do homem e morre nele? Sim, é claro, o misticismo corrente também abre alas para eventuais investidas celestes, que fecham elos difíceis de se conciliar. Mas não é bem um sentido vertical a questão.

Ainda ele, mergulhado em si mesmo. Corpo cansado. Nas olheiras o símbolo da persistência, nenhum episódio pode ser perdido! O caminho viciou o peregrino e sua visão, depois de tanto tempo na névoa, é sem horizontes. Sua teoria, assustadoramente, só faz sentido para ele, não há mais ninguém que tenha visto o que ele viu. A tarefa de fazê-la compartilhada já o consome e o algema: ele é escravo do que desvendou. Os espasmos e delírios o levam para a densidade por onde se aventurou, mesmo já num dia limpo de céu azul. Ali estão outros tantos, com lanternas nas mãos, vasculhando o que se propagou digno de ser achado. A energia daqueles focos de luzes alimentaria uma cidade inteira e realmente traria certo tipo de revelação, mas para eles, neste momento, não há vida além da obscuridade.

O que afinal se solidificou no caminho? Nada de experiências fechadas ou conclusões definitivas. Algo, entretanto, carimba o roteiro de volta. Uma límpida impressão de que a força despendida na “cartografia do ser” deve outras tantas, perder força e ceder a uma viagem descentralizada de si. Quando o esporte se torna muito conhecer-se e decifrar-se, o troféu nada mais é do que voláteis assertivas sobre o indomável. “Um cego e seu mapa!”, ironiza o peregrino.

Já agora, ele enfadou-se do abismo que chama outro abismo e preferiu de vez em quando sair do lugar nebuloso que o envolve. Ele chama outros mochileiros a focar suas lanternas em outros pontos - talvez não tão legítimos quanto os audíveis clamores do interior, porém eminentemente preciosos. Inaugura também uma cruzada contra a mecânica exploração do nevoeiro. Põe placas na entrada, salientando sobre a necessidade do Guia, que percorre e conhece todos os caminhos - reza a lenda de que na verdade é tudo sobre Ele, o mais sagaz explorador que já chegou ao outro lado e deixou uma vereda. Por fim, num último esforço, insiste em propagar que um nevoeiro, enquanto configurar-se como tal, será sempre uma úmida densidade de baixa visibilidade.