domingo, 22 de março de 2009

Creio e duvido

Por Robson Wellington

Como moro numa cidade da Baixada Fluminense o trem sempre foi pra mim um importante meio de transporte. E andar de trem é uma experiência antropológica! Vendedores de todo tipo de quinquilharia transitam pelos vagões. Pregadores de vários estilos disputam a atenção dos passageiros. Certa vez, estava indo para o trabalho num trem lotado e numa determinada estação entrou um pregador que começou a apresentar sua mensagem em voz alta. Nesse dia, eu prestei uma atenção especial ao pregador, ao conteúdo da mensagem e a reação das pessoas. O pregador falava como um arauto encarregado de declarar paz ou guerra e de fazer proclamações solenes. O conteúdo da mensagem era fortemente religioso e moralista. Algumas pessoas demonstravam certo incômodo, mas de uma maneira geral as pessoas ignoravam o pregador e sua mensagem. Aquele tipo de acontecimento tinha passado a fazer parte do quadro cotidiano da maioria daquelas pessoas e raramente provocava reações de adesão ou rejeição. Mas de repente, algo me chamou atenção. Quando o pregador vociferou uma sentença de condenação para aqueles que eram como “a víbora surda que tapa os ouvidos”, um casal de velhinhos abandonou imediatamente a aparente indiferença trocando entre si um forte olhar questionador. A senhora perguntou ao esposo: “Querido, Jesus manda fazer isso dessa forma?”. O senhor titubeando respondeu: “Querida, eu não sei”.

Surpreendentemente, percebi fé tanto naquele pregador quanto naquele casal. Li em algum lugar que “há mais fé na dúvida sincera do que na metade dos credos”. Daí, pensei em algumas implicações dessa percepção e concluí que fé e dúvida podem caminhar lado a lado, por mais que os condicionamentos da nossa cultura religiosa digam o contrário. É intrínseco ao sujeito religioso assegurar a sua convicção inabalável, a sua certeza absoluta e o seu acesso perfeito à verdade divina. Ele se considera tão convicto de que atingiu a realidade única, objetiva, real e concreta, que sai para fazer prosélitos. Admitir a remota possibilidade de não estar alinhado à verdade absoluta, constitui-se em uma fraqueza inadmissível para os demais praticantes de sua tradição. O grande problema dessa maneira de pensar é que ela parte de uma premissa falsa. A dúvida não é a antítese da fé. O oposto da fé é a decisão de não crer em Deus. Todos nós temos dúvidas porque nosso conhecimento é imperfeito e incompleto. O homem que clamou a Jesus: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” demonstrou a disposição firme de crer em Deus mesmo em meio a perguntas e dúvidas.

João Batista foi aquele que ouviu uma voz do céu afirmar sobre Jesus: “Este é o meu Filho amado”. Contudo, ele começou a duvidar quando a sua vida deu uma reviravolta e ele se viu atrás das grades de uma prisão. Jesus não estava fazendo as coisas do jeito que ele acreditava que deveria fazer, por isso questionou: “És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar outro?”. E foi justamente sobre esse homem, que permitiu-se duvidar, que Jesus afirmou: “Entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João o Batista”. Só quem abandona o conforto dos dogmas pode semelhante a um veleiro, experimentar a aventura de navegar ao sabor do vento indomável do Grande Aventureiro sem a menor pretensão de achar um porto. Só quem abandona a rigidez dos dogmas pode desfrutar da graça da fé no Transcendente, no Insistematizável com seu sublime misto de revelação e mistério.

Na Bíblia as pessoas que encontramos com certezas absolutas não são os heróis da fé. Aqueles que nunca duvidaram com o que seria a vontade de Deus foram os fariseus que crucificaram Jesus. A fé confia e permanece fiel mesmo quando é provada. O caminho do Evangelho é cheio de perguntas, dúvidas, lutas e ainda assim, fé! Chesterton no primeiro capítulo de seu livro Ortodoxia fala sobre o manicômio. Segundo ele, o manicômio é onde deveriam estar “as pessoas que acreditam plenamente numas poucas máximas cínicas não verdadeiras”. Loucos com sua lógica, suas convicções inabaláveis e suas certezas absolutas. Ele conclui o capítulo dizendo que: “Aquele transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem ocupa primeiramente a posição semelhante à do sol no céu. Temos consciência dele como uma espécie de esplêndida confusão; é algo brilhante e informe, ao mesmo tempo fulgor e borrão. Mas o círculo da lua é tão claro e inconfundível, tão recorrente e inevitável, como o círculo de Euclides sobre um quadro-negro. Pois a lua é absolutamente razoável; e a lua é a mãe dos lunáticos: ela deu a todos eles o seu nome”.

Vale lembrar também o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, quando diz que: “O ateísmo, em sua própria negatividade, pode ser uma grande oportunidade para a fé; pode até ser uma medida da Providência para que os cristãos, assumindo a crítica atéia, compreendam que Deus é sempre muito maior do que as idéias que nós fazemos dele. A crítica dos ateus pode ajudar-nos a romper os esquemas em que tantas vezes encadeamos e deformamos a idéia de Deus”. Formar uma cultura de diálogo requer uma imensa confiança em Deus e uma disposição para abrir mão da necessidade de determinar, mudar ou controlar as convicções e ações dos outros. Quando criamos um ambiente em que as pessoas são livres para questionar, duvidar e investigar devolvemos a Deus a responsabilidade de mudar o coração das pessoas. E é exclusivamente dele essa tarefa.

A Ele a glória!

6 comentários:

Marlon Ribeiro disse...

Não há problema em ter duvidas, o problema muitas vezes está em não querer respostas, ou não crer que elas existem...pois elas existem, podendo nós conhece-las ou não...

Filipe Degani disse...

Concordo com o Marlon.
A dúvida sempre foi central no pensamento antigo e foi consgarada por Descartes como o melhor meio de chegar a verdade. O que nos impede de chegar até ela não é dúvida, mas a nossa disposição sincera de encontrá-la e assumi-la, seja ela favorável ou contrária à nossa imagem que dela fazemos.

Miguel Del Castillo disse...

Caraca Robson. Gostei bastante disso. Se tivesse um marca texto digital, pegaria ele para marcar "Só quem abandona o conforto dos dogmas pode semelhante a um veleiro, experimentar a aventura de navegar ao sabor do vento indomável do Grande Aventureiro sem a menor pretensão de achar um porto."

Eis os caminhos da graça no seu texto. Penso que o problema principal em se criar um ambiente assim, aberto às dúvidas, é o medo que as pessoas têm da liberdade. De dar liberdade. Só Deus conseguiu assumir plenamente esse risco, mas a gente morre de medo! hehe...

Bianca disse...

Edificante seu texto!
Obrigada!

Ponho num mesmo saco um religioso que deliberadamente abre mão da dúvida em prol de suas verdades absolutas, e um ateu convicto com sua fé enorme capaz de abrir mão de suas dúvidas também...

Abaixo a dicotomia! rs


Minha verdade é uma Pessoa!

bjão!
=]

Raphael Campos disse...

Suas viagens são muito loucas,
me perco com elas..
hahahah..

Rosana Steimbach disse...

Uhau! Como assim eu não conhecia esse blog!? Gostei demais d que li aqui... e então descubro que és um pensador, que escreves muito bem e que eu é quem "preciso ser ativada" ahuaha... Muito boa essa sua experincia do trem, no vagão dos crentes é um bom lugar para ver o próprio coração. Uma vez eu li que a dúvida é amiga da fé e que na verdade o seu inimigo é o medo... Bom é isso menino, voltarei aqui mais vezes!