domingo, 8 de março de 2009

Um lugar que chora

Por Robson Wellington

O romancista inglês John Berger fez o seguinte relato: “Alguns dias depois de retornar de onde acreditava ser, até recentemente, o futuro Estado da Palestina, e que hoje é a maior prisão do mundo (Gaza) e a maior sala de espera do mundo (Cisjordânia), eu tive um sonho. Eu estava sozinho, em pé, despido até a cintura, num deserto de arenito. Depois a mão de alguém apanhava no chão um punhado de terra e jogava no meu peito. Esse gesto estava marcado por consideração, e não agressividade. Antes de me atingir, a terra ou o cascalho se transformavam em pedaços de tecidos rasgados, provavelmente de algodão, que se enrolavam, como faixas em torno do meu dorso. Depois, esses pedaços de tecido se transformavam novamente e viravam palavras, frases. Escritas não por mim, mas pelo lugar. Ao me lembrar desse sonho, a expressão terra arrasada não parou de vir e voltar à minha cabeça. Essa expressão descreve um lugar ou alguns lugares, onde tudo, tanto, no sentido material como imaterial, foi decepado, removido, varrido, assoprado, desviado, tudo, exceto a pobre terra palpável”.

Eu também tive um sonho. Foi no mês de janeiro que vi mais de mil palestinos morrerem confinados em uma estreita faixa de terra, submetidos ao ataque terrestre, marítimo e aéreo de um dos mais poderosos exércitos do mundo. A Faixa de Gaza é o território mais densamente povoado do mundo e, ali achar que bombas separarão o joio (terroristas) do trigo (civis) não passa de uma piada mórbida. Dois terços das vítimas da ofensiva israelense não eram combatentes e um terço tinha menos de 18 anos. Folhetos foram lançados anunciando os bombardeios e pedindo para que a população fugisse. Mas, fugir para onde? Todos os acessos ao lugar foram fechados. Dessa vez até a entrada da imprensa foi proibida.

A ministra israelense de relações exteriores Tzipi Tivni disse se comover com o crescimento do “ódio contra Israel”. Mas quem o semeou? É realmente surpreendente que esse espetáculo fúnebre contra crianças, mulheres e idosos tenha provocado a ira contra os dirigentes israelenses? O pacifista israelense Uri Avnery fez uma avaliação precisa: “O que ficará marcado a ferro em brasa na consciência do mundo é a imagem de Israel, mostro sanguinolento, pronto a cometer a qualquer momento crimes de guerra e incapaz de obedecer a todo limite moral. Haverá conseqüências graves para nosso futuro a longo prazo, nossa imagem no mundo, nas chances de obter a paz e a calma. Esta guerra, é, no final das contas, também um crime contra os israelenses, contra o Estado de Israel”.

De certa forma, também senti um punhado de terra sendo jogado no meu peito e me lembrei de coisas das quais me envergonho. Houve um tempo que acreditava e ensinava que a fundação do Estado de Israel em 1948 era a fatualidade da leitura histórica na seqüência do apocalipse bíblico. Guardava simpatia pela defesa que os EUA ofereciam ao povo escolhido de Deus e ira pela oposição de todos os infiéis aliados da Besta e Anticristo. Daí até a tácita celebração de cada bomba lançada como sinal da volta de Cristo foi um pulo. Aqui está o nefasto resultado da religião. Ela é cínica em essência. Ela torna sagrado instituições, estruturas e abstrações e abandona o domínio do respeito pela pessoa humana.

O modo como somos uns com os outros é um bom teste para nossa fé. Brennan Manning coloca isso da seguinte forma: “Como trato um irmão ou irmã no dia-a-dia, como reajo ao bêbado marcado pelo pecado na rua, como respondo a interrupções de pessoas de que não gosto, como lido com gente normal em sua confusão normal num dia normal podem ser melhor indicação da minha reverência pela vida do que um adesivo contra o aborto preso ao pára-choque do meu carro”. Se existe alguma doutrina ou lógica religiosa que legitima o que vem acontecendo na Faixa de Gaza eu não quero ter nenhuma parte com ela. O meu Messias é palestino! O poeta curdo Bejan Matur escreveu que: “um lugar que chora entra no nosso sono e não parte nunca”. Então, finalmente comecei a entender o sonho, a terra jogada que virou tecido, que virou palavras e frases, que escrevi não por mim, mas pelo lugar.

7 comentários:

Anônimo disse...

"Aqui está o nefasto resultado da religião. Ela é cínica em essência. Ela torna sagrado instituições, estruturas e abstrações e abandona o domínio do respeito pela pessoa humana."

Assim como em relação ao Estado de Israel, diversos temas que chegam a mente são mutilados e distorcidos numa espécie de senso comum cristão. Fico pensando em como um simples contraponto ou visão alternativa poderia oxigenar e enfraquecer mitos religiosos.

Acho que um bom modo de fazê-lo não passa por atacar deliberadamente a religião. Como em Gaza, onde é impossível atingir alvos militares sem destruir civis, é no mínimo irresponsável não preservar os escravos cuja religião cativa.

Não sei, talvez uma nova tática de guerra, sufocando, esvaziando o inimigo...

Texto bom pra caramba cara...
Abraços,
Eliel.

Diego disse...

Choro o choro dos palestinos também...

Felipe Reina disse...

O início do texto ficou muito bom, sem chances para ambiguidades.
Gostei muito do texto, cara, não lembro se cheguei a te dizer isso pessoalmente.

Tiago Puglia † disse...

a moral servil universaliza uma abstração e exige que todos se comportem de forma a apoiar a permanencia dessa abstração


paulo avisou: nao se coloquem novamente sob jugo de escravidao...

os que buscam uma moral ilibada diante dos homens sao escravos da situação nojenta...

Tiago Puglia † disse...

a fonte de todos os males eh o estado de pecado de todos e de cada um de nos, seres humanos...

o pecado afeta tudo que produzimos, e nao deixaria de lado nosso senso de moralidade...

vivemos em um mundo onde há porta-vozes "reconhecidos" daquilo que eh bom comportamento, e els têm "porta-porretes" a seu serviço... eh assim tanto no ambito do estado civil quanto no ambito da sua igreja (sea ela qual for)...

se te recusas a obedecer uma lei imaginada e aprovada por uma maioria de pecadores contra uma minoria de pecadores contrários a ela você fere a moralidade do estado e eh sujeito ao porrete da lei...

se te recusas a acatar as ordens de um pecador que eh pastor ou autoridade da tua igreja voce fere a moralidade da versao de evangelho que esse pecador determinou e eh sujeito à "disciplina"...

acontece que tudo o que sai de nossas mentes eh corrompido pelo pecado e disso soh nos sobra a revelação... a revelação que aponta para Jesus Cristo, o homem...

Ele disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida...

o estado e a igreja decidiram ignorar isso e decidiram que a "verdade" são enunciados cujo significado corresponde à realidade sensível... nos sabemos que a verdade eh um homem...

decidiram que "o caminho" eh uma vida balizada pela reta moral que eles mesmos te entregam... e nos sabemos que o caminho eh um homem...

decidiram que "a vida" eh um estado de animação da matéria, uma grandeza biologica qualquer... nos sabemos que a vida eh um homem...

Marlon Ribeiro disse...

Tiago....muito bom seu comentário. mas como sempre digo ao Robson, o fato de que a moral do homem é distorcida pelo pecado não exclui o fato de que Deus tb é um ser moral. e apartir disso creio q há uma moral universal, essencial ao Homem, as variantes disso é alteração resultante do pecado. sabemos que o homem caído não tem o amor, e revelação de Deus, por isso não pode se arrepender, mas não podemos assumir que a graça comum é uma manifestação da moral universal de Deus colocada em cada ser humano?ou seja? todo mundo em qualquer cultura tem noção de coisas que são boas ou n. o fato de que o homem é corrompido pelo pecado certamente nos dá plenos direito de questionar a impossição de sua moral, ou entendimento da mesma, mas não pode nos fazer pensar que Deus seja um ser a-moral.
sei que essa afirmação não foi feita, mas as vezes é o que parece ser dito.

Robson Wellington disse...

Eliel,

Também estou me questionando sobre a melhor forma de agir diante desse dilema. É complicado enfraquecer os mitos religiosos pela pregação do evangelho da graça de Deus, zelando sempre pela comunhão dos santos. A minha opção foi permanecer DENTRO, junto e misturado, mas abrindo janelas. Acho que esse é o caminho...

Abraço!

Robson Wellington